domingo, 30 de setembro de 2012

Costas voltadas a quem ama (7)


De telemóvel ao ouvido, escutava a “tuuu… tuuu” indicador de que a chamada estava a efectuar-se normalmente segundo as leis do mundo digital.

O tremor e o suor do corpo faziam-no sentir-se inquieto e perturbado, como se um sonoro despertador abanasse dentro dele. Por graça de algum anjo que o acompanhasse, do outro lado ninguém o atendeu. Desligou. Percorreu-o a certeza de que esse era o sinal positivo de que o que estava prestes a fazer lhe traria dificuldades.

“Eh pá, tas por aqui?!” Ouviu inesperadamente. A palmada que levava nos lombos, a voz, alegre e bem conhecida, fazia-o olvidar aquele momento. Carlos era o nome do jovem que se sentava a seu lado. Há muito não se encontravam e o tempo foi passando naquela tarde de feriado.

Passaram muitos meses pelas conversas cruzadas que foram trocando ao longo das quase duas horas que se mantiveram ali bebericando cerveja puxada por uns pistáchios salgados. Mulheres e homens, férias e trabalhos, dinheiro e falta dele… mas uma das conversas bateu lá fundo gravando-se nas entranhas daquele homem que sonhara partir para uma mulher desconhecida e acabara de fazer um telefonema no intuito de ganhar algum dinheiro fácil.
Falou-lhe, o Carlos, de um amigo comum que em momento de ressabiado sentimento por uma atitude dos pais resolveu deixá-los e partir em busca de um mundo de novo sonho. Não sabia que queria, não sabia que iria encontrar e não sabia que fazer. Simplesmente partiu.
Lá longe, em terras da Guiana Francesa, no mundo da América do Sul, empregou-se na construção civil. O calor implacável do Verão trazia-lhe dores de cabeça agudas. A fome chegou a apertar, porque o ordenado ganho com muito suor não chegou sempre a tempo e horas, ficando mesmo muito do seu valor perdido naquele submundo de ilegalidade laboral.
Quis voltar uma e outra vez, mas o bilhete de avião não se comprava só com o desejo intenso de voltar. Em muitos tempos ter-se-ia dirigido a uma agência de viagem para comprar o bilhete de regresso.

Engoliria os sapos que fosse necessário, espremeria o coração orgulhoso, mas não tinha outro remédio. Voltar era a única solução. Solução dolorosa, mas a única que lhe permitia restaurar a dignidade de homem. Voltar com humildade, explicar as razões da volta e aceitar o acolhimento com que sabia ser recebido. Conhecia bem os corações de seu pai e de sua mãe. Sabia perfeitamente que, apesar da mágoa que lhes provocara, das lágrimas de sangue que lhes fizera gemer em silêncio, eles se lhe abririam num abraço do tamanho do mundo e a sua dignidade, ferida pelo orgulho egoísta de querer ser único e chegar onde lhe não era possível, ficaria plenamente curada.

O homem do “banco de madeira” engoliu em seco por se rever em muitos dos momentos da história do seu amigo. Pensou que andava, talvez, demasiado distante daqueles que eram parte de si. Lágrimas caíram-lhe, emocionadas, do olhar… 

domingo, 16 de setembro de 2012

Um sonho e uma ilusão (6)


…Três dias depois nascia o bebé. A notícia não demorou a divulgar-se. Era um menino esperado.
       O sonho da mãe, que não teria mais que 23 anos, assim se realizava. Mas aquele menino foi o encanto não só dela, mas de toda a família.
       Haviam passado já 20 anos, que mais pareciam uma eternidade, sem que se sentisse a alegria do nascimento de uma criança naquela família.
       A bisavó, uma velhinha simpática de rosto bonito, na casa dos 80, dizia sentir o coração desfalecer por permanentemente lhe aflorar a ideia de que morreria sem ver o seu “netinho”. A notícia fê-la rejuvenescer, como a fez encher de felicidade e deixar correr uma ou outra lágrima solitária a presença daquele grupo de gente nova.
       Por vezes sentia-se só. A presença de cada um deles era mais preciosa que a mirra, o incenso ou ouro que os Magos tinham oferecido ao Menino Jesus. Cada presença, ela sentia-o, era o melhor dos presentes que poderia receber.

       “Um café se faz favor”. Enquanto ele lhe não chegava, pegou no jornal e folheou meia dúzia de páginas que lhe deixavam o negro da tinta na ponta dos dedos. Obrigado, respondeu, olhando de soslaio a menina que lhe veio trazer a chávena do bem desejado café.
       Numa das páginas  apareceu-lhe a foto de um homem negro e com um boné, tipo tupperware, enfiando na cabeça gorda. Era feio mas a mensagem que por baixo dele se apresentava era tentadora. Solução barata para os problemas de dinheiro, que não abunda na sua conta bancária e que quer sempre diminuir, mais ainda em tempos de crise; solução barata e cem por cento garantida para os problemas de amor e de atracão de parceiros.
        O trago de café que engoliu nesse momento tornou-se gelado e amargo diante da imagem que a recordação de um segundo lhe trouxe à mente. Ela estava lá de olhos semi-cerrados a impregnar-lhe a mente com perfume sedutor. Repentinamente voltou a desejá-la.
       Sacudiu a cabeça como quem quer forçar uma ideia a sair. Mas os cem por cento de garantia anunciados pelas palavras do homem gordo do jornal caíram-lhe fundo na vontade. Pôs-se a fazer contas à vida e num sopro de razão pensou que era tudo uma patranha para lhe fazer minguar ainda mais a conta do banco.
       Pensou em como as tentações ligeiras podem tornar-se drama ao recordar a sobrinha que, anos antes, lhe confidenciara que gostaria de experimentar fumar droga para saber como era. Agora restava-lhe um rosto triste, desmaiado de cor e vazio de expressão. A sua vida tinha-se arruinado e a de seus pais estava a crescer regada pelas lágrimas.
       Recordou o que na adolescência lhe falaram no grupo de jovens e, ao sorrir por recordar os “bons velhos tempos”, embora apenas dois ou três anos se tivessem passado, em que corria de lado para lado para não faltar a nenhuma das actividades daquele grupo em que estava inserido.
        E recordou que se sentira rejeitado quando tinha falado em namoro à Ana.      
         Voltou a ficar triste e do coração subiu-lhe a ideia de que não tinha sorte na sua relação com mulheres.
        Não fazia mal nenhum e ninguém tinha que saber! E se telefonasse, só para saber como era, para o número de telefone que parecia florescer naquela folha de papel escuro de um jornal diário? Mas… e a irmã que ele tanto amava, e a mãe que continuava a carregar a cruz, desgastando a vida do seu corpo e acumulando “créditos” para a eternidade, cuidando do pai, que piorava na sua doença? Que pensariam… que diriam… que sentiriam eles se soubessem que ele estava ali tentando a voltar a correr atrás da ilusão?
       “Vai dar tudo certo”, disse de si para si enquanto marcava um número de telefone. Sinal de chamada. O seu corpo tremia...

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Amo-te Muito (5)


Ela olhou-o bem fixamente nos olhos aguardando com expectativa o que ele iria dizer. Ouviu-lhe sair da boca um “Amo-te muito”. 

Eram eles os únicos filhos daquele casal que, havia já muitos anos, tinham vindo do norte, para se fixarem a trabalhar na periferia de Lisboa.

Com a perspectiva da partida do irmão atrás de amores virtuais e desenraizados da realidade da vida, ela sentia-se aterrorizada com a ideia de ter que vir a cuidar sozinha do pai que, entretanto, tinha já dado fortes sinais de estar a ser dominado pela debilitante doença de Alzheimer. 

Aquele abraço e o “amo-te” traziam a magia reconfortante da certeza de que a família não se estava a esfarelar, pelo contrária, parecia estar mais unida e solidificada na comunhão.

Depois, havia o bebé que estava para nascer. Naquela momento, Raquel sentia-se renascer, depois de atravessar longos dias de amarga solidão, em que tudo parecia escurecer a partir de dentro, porque o coração teimava em perder as suas forças. 

Raquel riu-se e disse - parece que o menino acendeu uma grande lanterna dentro de mim, sinto-me cheia de luz e apaixonada pela vida e por tudo o que gira à minha volta. Vamos dizer aos pais que tu estás cá.

Falaram e riram pelo caminho, como dois adolescentes apaixonados. “espero que não lhes dê nenhum chelique quando te virem aqui - disse ela - para eles tu já partiste, e olha que estávamos todos convencidos de que não voltarias tão depressa”. Deu-lhe um empurrão com uma das mãos enquanto lhe chamava parvo.

Ele sabia que ela não poderia fugir a correr por estar grávida de nove meses. Fingindo que lhe dava uma palmada por ela lhe haver chamado parvo, passou-lhe o braço esquerdo pelos ombros e com a mão direita, acariciou-lhe o ventre, fez cara séria para dizer “acho que não me ia aguentar muitos dias longe de ti, do pai e da mãe... concordo contigo: fui mesmo parvo ao pensar deixar-vos e ir em busca de alguém desconhecido. Como pude pensar isso se tenho a minha mana barriguda que está sempre comigo?” Riram satisfeitos e assim entraram em casa dos pais, a casa que era a sua também. 

Sempre lá encontraram conforto. Muitas vezes aí tinham sido repreendidos e muitas lágrimas aí tinham derramado, mas a verdade é que era aí que se sentiam bem, porque aí viveram sempre amados, porque para aí correram, como ainda agora fazem, sempre que se sentiam no desconforto da dúvida, do medo e dos fracassos. Foi aí que sempre foram reconfortados. Foi aí que construíram a família que continua a ser a razão e a base da sua segurança.

Na parede uma imagem da Sagrada Família, estrategicamente pendurada, parecia acolher todos aqueles que na porta entrassem. Por baixo, sentado numa cadeira, e com a esposa a animá-lo, no meio de lágrimas teimosas, o pai rezava para que o filho voltasse. E voltou, nem chegara a sair da estação. 

Ao vê-lo as lágrimas correram mais, mas a fonte era agora a emoção e a alegria…