Cai a noite. Um dos milhares de
sem-abrigo que rastejam pela vida, está ali
deitado dentro de uma caixa de papelão suja.
Quando chegou transportava em si a
imagem de que os Estados Unidos seriam o paraíso na terra e uma das desilusões
que apanhara foi o facto de encontrar gente sem número vagueando pela noite
escura dos sem esperança, gente cheia de
nada e com mil razões para nunca esboçar um sorriso.
Haviam perdido o sabor dos sorrisos,
da alegria e mesmo da vida. Diante deles não há placas a indicar direcções ou caminhos. O destino para que se sentem
chamados é vazio e por isso seus olhares só mostram o nada, são apagados.
Desde o primeiro dia, em que pisara
aquelas paragens, que se sentia impressionada por essa certeza de que no país
do Tio Sam também havia muitos milhões de pobres.
Enquanto caminhava saboreando o doce
das palavras que escutara encostada ao mastro da bandeira de Portugal, parecia
ter-se tornado ainda mais sensível àquela miséria adormecida nos vãos de
escadas dos escritórios ricos de Nova York. Ela tinha quase tudo o que era
preciso para se ser feliz, para se sentir única no mundo e na história.
Bem sabia que muitos outros tinham mais,
mas o que tinha lhe bastava e nunca se sentiu desejosa de muito mais. Tinha uma
família, inteligência e um curso que a encantava por se sentir atraída pelo que
fazia, amigos sem número, embora os de peito fossem apenas um pequeno número,
porque assim escolhera e não precisava de mais.
Tinha receio de dar esmola fosse a
quem fosse, porque sempre ouvira dizer
que muitas vezes os mendigos não precisavam, que o que recebiam era para
gastar em vícios, e que até mesmo o que se dava para instituições servia, em
muitos casos, para ir enchendo bolsos de dirigentes. Já uma vez ou outra tinha
discutido essas questões mas sempre sem aclarar ideias dentro de si.
Agora, caminhando, pensava que todos
têm o direito de ser felizes, se não sempre, o maior de tempo possível. Se
podia partilhar com aquela gente alguma coisa, porque é que havia de estar a pôr
em causa o destino que dariam às suas ofertas? E não será que pudesse fazer
alguém feliz dando um pouco de si, mesmo que não desse dinheiro? Mas não tinha tempo…
O curso absorvia-a demasiado, e porque
queria dar tudo para que a nota final dos seus estudos fosse realmente
brilhante, sempre foi considerada a melhor aluna por onde passou na escola.
Tinha medo de poder agarrar-se demasiado às suas coisas e a si mesma perdendo
as oportunidades de estar mais próxima daqueles de quem ninguém se aproxima. Ousou
pensar que era preciso arriscar.
Entrou em casa, ligou a televisão e
recebeu a notícia de que duas crianças tinham morrido queimadas em casa, onde a
mãe as deixara para ir trabalhar sem ter oportunidade económica para as deixar
à guarda de alguém. Também ela não tinha tempo para seus filhos e perdera-os de
uma só vez. Não queria acreditar que o dia terminasse assim. Ficou especada na sala, quase sem
reacção.
Perguntou-se: “que estou e u a fazer à minha vida?”
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